O surgimento da Filosofia: Sócrates e os Pré-Socráticos
O pensamento de Sócrates é um marco na constituição de nossa tradição filosófica, e pode-se dizer que inaugura a Filosofia Clássica rompendo com a preocupação quase que exclusivamente centrada na formulação de doutrinas sobre a realidade natural que encontramos nos filósofos pré-socráticos.
A própria denominação “pré-socráticos” já reflete a importância da filosofia de Sócrates como um divisor de águas. É nesse momento que a problemática ético-política passa ao primeiro plano da discussão filosófica como questão urgente da sociedade grega, superando a questão da natureza como temática central.
É na Grécia dos sécs. VI-IV a.C. que a filosofia começa a se definir como gênero cultural autônomo, com estilo próprio e objetivos e princípios específicos. É necessário, portanto, procurar entender o surgimento da filosofia como um fato cultural, como produto de um determinado contexto histórico e social. Esse surgimento corresponde ao começo da estabilização da sociedade grega, com o desenvolvimento da atividade comercial, com a consolidação das várias cidades-estados e com a organização da sociedade ateniense (Atenas, capital da Grécia).
A democracia representa exatamente a possibilidade de se resolverem, através do entendimento mútuo, e de leis iguais para todos, as diferenças e divergências existentes nessa sociedade em nome de um interesse comum. As deliberações serão tomadas, assim, em reuniões de cidadãos, as assembléias. Isso significa que as decisões são tomadas por consenso, o que acarreta persuadir, convencer, justificar, explicar. Não se dispõe mais da força, dos privilégios, da autoridade de origem divina. Anteriormente, havia a imposição, a violência, a obediência, o privilégio, a tradição, o medo como formas do exercício do poder. A linguagem, o diálogo, a discussão rompem com a violência, o uso da força e do medo, na medida em que, em princípio, todos os falantes têm no diálogo os mesmos direitos (isegoria): interrogar, questionar, contra-argumentar. A razão se sobrepõe à força, é uma forma de controlar o exercício do poder. A linguagem precisa ser racional, as discussões pressupõem a apresentação de justificativas, de argumentos, sendo abertas à interpelação, ao questionamento.
O surgimento da filosofia corresponde portanto à busca de bases para essa discussão legítima, tais como: o que é a verdade? Quais os princípios da razão? Com base em que critérios se pode justificar aquilo que se diz? É neste sentido que podemos entender o contexto histórico e político de surgimento do discurso filosófico, da filosofia, que encontra seu apogeu nos sécs. V-IV a. C.
Essas mudanças sociais e culturais não se caracterizam apenas pela filosofia, mas seus reflexos podem ser constatados igualmente em outras áreas da cultura e do pensamento para as quais os gregos contribuiram de maneira tão marcante, constituindo um padrão de grande influência no desenvolvimento de nossa cultura. O teatro, por exemplo, com a tragédia, deixa de ser uma cerimônia, um ritual de caráter quase religioso, tornando-se uma cerimônia cívica, em que certas virtudes morais e políticas são exaltadas. Como exemplos temos Ésquilo, cujas tragédias datam de 490-456 a. C., e principalmente Sófocles, cuja obra é de 469-405 a.C., destacando-se quanto a essa temática sobretudo Édipo rei e Antígona.
Além do teatro, podemos mencionar os relatos históricos e geográficos como os de Heródoto (História das guerras contra os persas, c.460-425 a.C.), Tucídines (História da Guerra do Peloponeso, 424 a.C.), e Xenofonte (Anábasis e Hellenica, 375 a. C.), que representam a passagem das narrativas míticas e lendárias da tradição arcaica para os relatos de viagens e o testemunho dos participantes dos eventos históricos.
Surge também a ciência, em especial a física e a astronomia, além da medicina, com Hipócrates (470-360 a.C.), representando até certo ponto a transição das práticas mágicas para uma visão mais secular da realidade natural, procurando assim estabelecer relações entre os fenômenos entendidas em um sentido estritamente natural.
Surgem ainda as artes do discurso, a retórica e a oratória; na medida em que a palavra passa a ser livre, ela se torna o instrumento através do qual os indivíduos, enquanto cidadãos, podem defender seus interesses, seus direitos e suas propostas.
Enfim surge a própria Filosofia, a partir da transição das narrativas míticas e religiosas ─ características das teogonias, que aprensentam uma visão mítico-poética do real, apelando para os mistérios e para a tradição ─ para um discurso em que tudo que se afirma deve ser submetido à discussão, à argumentação, à justificação, preocupando-se assim, com os critérios de verdade e de justificabilidade.
Bibliografia:
Livro: Iniciação à História da Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Autor: Danilo Marcondes. Capítulo 3 (páginas: 40, 41, 42).
“... Mas também vós, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação à morte, e considerar esta única verdade: que não é possível haver algum mal para um homem de bem, nem durante sua vida, nem depois da morte, que os deuses não se interessam do que a ele concerne; e que, por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que a mim concerne, não é devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer agora e ser libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão por que a divina voz não me dissuadiu, e por que, de minha parte, não estou zangado com aqueles cujos votos me condenaram, nem contra meus acusadores. Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles votaram contra mim, que me acusaram, pois acreditavam causar-me um mal. Por isto é justo que sejam censurados. Mas tudo o que lhes peço é o seguinte: Quando os meus filhinhos ficarem adultos, puni-os, é cidadãos, atormentai-os do mesmo modo que eu os vos atormentei, quando vos parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que da virtude. E ,se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada, reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não lhes é devido. E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos. Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para deus".
Trecho da última fala de Sócrates antes de tomar a cicuta (erva, veneno) condenado a morrer injustamente.
Apologia de Sócrates - Platão